Corpo e Psicoterapia Corporal na Aldeia Global

Christoph Helferich

Análise Bioenergética • The Clinical Journal of the IIBA, 2015 (25), 19-40

https://doi.org/10.30820/0743-4804-2015-25-pt-19 CC BY-NC-ND 4.0 www.bioenergetic-analysis.com

Sumário

A realidade da Aldeia Global influencia profundamente a psicoterapia corporal, desafiando conceitos estabelecidos como “natureza”, “corpo” e “identidade pessoal”. Este artigo pesquisa essas mudanças, desenvolvendo especificamente três pontos: a) Os conceitos de “corpo” e “natureza” nos fundadores da psicoterapia corporal; b) O desafio a esses conceitos pela evolução gradual do avanço tecnológico e da comunicação virtual; c) A tarefa da psicoterapia hoje, a saber, ampliar a conscientização da importância tanto da “natureza” externa a nossa volta, quanto de nossa “natureza” interna corporal, que não podem mais ser tomadas como certas; em vez disso, ambas precisam tornar-se objetivos de nossas escolhas e estilos de vida. Na seção de considerações clínicas, o autor apresenta a técnica de “contato nutriente” (“nurturing contact”), que possibilita a experiência profunda do cliente da sua própria essência corporal.

Palavras-chave: psicoterapia corporal, aldeia global, natureza, escolha, contato nutriente (nurturing contact)

Prólogo

Encontrar o artigo de Maê Nascimento sobre O dilema da psicoterapia no momento atual no último volume de Bioenergetic Analysis (Análise Bioenergética) (Nascimento, 2014) foi uma agradável surpresa. Já havia escrito este ensaio, assim, descobri que compartilhamos muitas ideias, encontrando ali uma confirmação a posteriori de um área comum em nosso modo de pensar. Uma dessas ideias compartilhadas é a necessidade de que nós, terapeutas bioenergéticos, nos engajemos no momento histórico em que estamos vivendo ou, como minha colega coloca a questão: “a necessidade urgente de enfrentar e avaliar a enorme dimensão das atuais transformações culturais e de seu impacto sobre a personalidade do indivíduo e seu modo de vida” (Nascimento, 2014, p, 15). Além disso, achei uma surpreendente sinergia em nossa perspectiva clínica, quando a autora propõe um modelo de trabalho energético que visa “criar uma natureza mais introspectiva que ajude a conexão do fluxo energético – e o faz sem qualquer tipo de interferência ou sugestão vinda do terapeuta” (ib. p. 29). Esse objetivo coincide perfeitamente com os objetivos das técnicas de contato nutriente apresentadas abaixo, em minhas considerações clínicas.

Entretanto, existem também diferenças consideráveis entre nossas contribuições. Enquanto Maê Nascimento dá destaque às mudanças na personalidade e no estilo de vida, a transformação de “pessoas em direção ao interior do passado” em “pessoas em direção ao exterior da sociedade moderna de consumo” (ib. p. 20), procuro descrever o processo total de transformação da natureza, incluindo o corpo humano, em um artefato. Além disso, em geral sou mais cauteloso com relação à avaliação de todas essas mudanças. Sempre tento ter em mente que nosso modelo de referência, ou seja, a pessoa dotada de profundidade interna é o resultado de uma evolução histórica razoavelmente recente. Como assinalei em algum outro momento, esta evolução está intimamente ligada à ascensão do Romantismo, simbolicamente começando com o herói da sociedade moderna, o Robinson Crusoe de Daniel Dafoe (Helferich, 2010). Voltarei a essas diferenças em minhas considerações finais. Como eu disse inicialmente, entretanto, estou muito satisfeito que as reflexões sobre o “global” contemporâneo tenham começado dentro da nossa comunidade bioenergética e por essa razão, considero o ensaio de Maê Nascimento e o meu como contribuições complementares de um discurso comum.

Introdução

Ponderar sobre as tendências que predominam nos tempos de agora e fazer conjeturas sobre seus possíveis progressos futuros causa, inevitavelmente, uma sensação de mal-estar e até ansiedade – ninguém sabe onde essa jornada vai terminar. Só sabemos que estamos na estrada, viajando cada vez mais depressa, como se estivéssemos girando à volta do grande Maelström, o inexorável redemoinho na história homônima de Edgar Allan Poe. Não é por acaso que uma das mais perspicazes abordagens sociológicas da atualidade se chama Teoria da Aceleração. Sua hipótese fundamental é que na modernidade “praticamente não existe esfera da vida ou da sociedade que não tenha sido afetada ou transformada pelo impulso em direção à aceleração” (Rosa, 2012, p. 285; ver também Rosa 2005, tradução para o Inglês 2013).

Esse processo de aceleração requer um grande esforço de integração por parte do indivíduo, para que ele acompanhe o ritmo dos tempos e enfrente o vago sentimento de alienação que se infiltra tão facilmente no mundo em que vivemos. Dito isso, já tocamos em algumas questões centrais ao papel da psicoterapia na Aldeia Global e, particularmente, o muito discutido julgamento dela feito da perspectiva psicoterapêutica. Sob esta ótica, gostaria de citar uma passagem famosa do Novo Testamento (Marcos 8, 36; versão do rei James): Portanto, de que adianta uma pessoa ganhar o mundo inteiro e perder sua alma? A advertência do Evangelho encoraja-nos a fazer uma cuidadosa avaliação dos processos de comunicação e de conhecimento peculiares à Aldeia Global.

Precisamos pesar as possíveis vantagens do desenvolvimento de tecnologia e informação (principalmente a ampliação da liberdade de comunicação e de autoexpressão), mas também os possíveis perigos e o lado obscuro da Aldeia Global, no que diz respeito à identidade dos indivíduos, sua percepção do eu e o mundo, além da experiência que eles têm de seus próprios corpos. Precisamos também ter em mente que a Aldeia Global é apenas a expressão tangível de uma tendência até mesmo mais profunda, uma tendência para a apropriação, transformação e, poderíamos dizer, o “re-incendiar” digital do mundo natural todo, inclusive do homem.

Assim, isso leva a uma reflexão sobre a hipotética perda da alma evocada pelo Evangelista: com suas sensíveis ferramentas para a percepção e autopercepção dos processos psíquicos, a psicoterapia é a guardiã privilegiada do lado interior do indivíduo. É tarefa da psicoterapia, juntamente com a filosofia e a sociologia, aprofundar, zelar e formular teorias sobre as repercussões do desenvolvimento tecnológico em nossa vida pessoal e social – no sentido mais amplo, em nossa identidade.

Este trabalho de discernimento é particularmente urgente no campo da psicoterapia corporal nos dias de hoje. Visto que ela se interessa nitidamente pela dimensão somática do cliente, seu “ser corporal”, a psicoterapia corporal, mais do que outras abordagens, confronta nosso “ser natureza”. Isso porque, segundo uma oportuna definição, “o corpo é a natureza que somos” (Böhme, 2003, p. 63). E é precisamente por esta razão, por sua íntima ligação com a natureza corporal do paciente, que atualmente a psicoterapia corporal tem que reconsiderar suas premissas básicas e, portanto, ela está em uma situação particularmente difícil, como se o proverbial tapete sob seus pés tivesse sido puxado. De fato, pareceria que os recentes progressos na ciência e na tecnologia aplicada, as tendências predominantes de nossa época com um todo, pudessem ser resumidas em uma ideia, “A Natureza não existe”. Ou, mais precisamente, “O que foi uma vez chamado de ‘natureza’ não existe mais”.

A ideia de que “a natureza não existe mais” nos revela quão profundamente a Aldeia Global afeta a psicoterapia corporal hoje. Ela afeta suas premissas teóricas fundamentais estabelecidas e sua possível função na sociedade do século XXI. Investigamos abaixo essas mudanças, salientando três pontos:

  1. A visão de “corpo” e de “natureza” dos fundadores da psicoterapia corporal, principalmente de Alexander Lowen.
  2. A reabertura dessas questões, o que se tornou necessário devido ao desenvolvimento da tecnologia e à nova realidade virtual.
  3. A nova tarefa da psicoterapia corporal: criar a consciência do valor de uma “natureza” externa e interna, entretanto, não mais a ser pressuposta como certa, mas, ao contrário, como um objeto de escolha e de estilo de vida.

A. “Corpo” e “Natureza” na visão dos fundadores da psicoterapia corporal

A palavra “fundadores” refere-se aqui a personalidades como David Boadella, Gerda Boyesen, John Pierrakos, Alexander Lowen e Malcolm Brown que, cada qual de sua própria maneira e a seu modo muito pessoal, interpretaram e deram seguimento à herança de Wilhelm Reich por eles compartilhada. Como sabemos, embora permaneçam dentro do campo da psicoterapia em sentido estrito, todas as suas abordagens ampliam significativamente o tradicional setting analítico, inclusive explicitamente e sob muitas formas, a experiência corporal do cliente, enquanto submetido à terapia. Mas, como muitos perguntarão, por que seria necessária essa ampliação de fronteiras de um setting analítico já consagrado? Por que razão seriam introduzidas no encontro terapêutico experiências e técnicas, tais como contato direto entre terapeuta e cliente, técnicas essas potencialmente confusas e, em todo o caso, difíceis de manejar (Klopstech, 2000; Helferich, 2004; Buti Zaccagnini, 2010)?

Enfim, espera-se que as respostas a essas questões sejam encontradas em uma visão de homem que é comum à psicoterapia corporal. Esta visão envolve a relação entre “natureza” e “cultura” nos seres humanos, e mais precisamente, o significado do corpo humano como um cruzamento dessas duas dimensões. Como Alexander Lowen escreveu, expressando essa visão partilhada de maneira exemplar:

“O objetivo da Bioenergética é ajudar as pessoas a recuperarem sua natureza primária, que é a condição de ser livre, o estado de ser gracioso e a qualidade de ser belo. Liberdade, graça e beleza são os atributos naturais de todo organismo animal. […] A natureza primária de todo ser humano é ser aberto à vida e ao amor. Ser reservado, encouraçado, desconfiado e fechado é a segunda natureza em nossa cultura. É o recurso que adotamos para nos proteger contra sermos feridos, mas quando tais atitudes se tornam caracterológicas ou estruturadas na personalidade, elas se constituem em um mal mais grave e incapacitam mais do que as sofridas originalmente.” (Lowen, 1975, p. 43-44).

Como se vê nesta citação representativa, Lowen pressupõe uma dinâmica conflitante entre a “natureza primária” do homem e sua “segunda natureza”, que é social ou pertencente ao caráter. Em torno desta dinâmica conflitante delineia-se uma série de opostos como os que se seguem:

Esses opostos agrupam-se em torno dos antípodas de “ego” e “corpo” que estão na polaridade “cultura” – “natureza” (Lowen, 1970, p. 211).

Na verdade, essas polaridades têm a mesma base, como o próprio termo “bioenergia” sugere: “Trabalhamos com a hipótese de que existe uma energia fundamental no corpo humano, manifeste-se ela em fenômenos psíquicos ou em movimento somático. A esta energia chamamos simplesmente de ‘bioenergia’. Os processos psíquicos, bem como os somáticos, são determinados pela ação desta bioenergia. Todos os processos vivos podem ser reduzidos a manifestações dessa bioenergia” (Lowen, 1958, p. 16).

Deste ponto de vista, como Reich já havia feito, é possível conceituar a relação entre os fenômenos psíquico-mentais e os somáticos no homem como “identidade funcional entre mente e corpo”. E é a fé na energia vital desta base corpóreo-orgânica que orienta nosso trabalho terapêutico, compreendido como correção do prejuízo inevitável ao corpo e à psique do indivíduo que o processo cultural envolve: “Bioenergética é uma técnica terapêutica para auxiliar uma pessoa a reunir-se novamente a seu corpo e ajudá-la a desfrutar ao máximo possível a vida do corpo” (Lowen, 1975, p. 43).

Em um ensaio anterior, identifiquei como “herança romântica” esse anseio que a psicoterapia corporal tem pela “totalidade natural” (Malcolm Brown) do homem (Helferich, 2010). Esta é uma tentativa de reconciliar, de curar a milenar cisão (cisma) entre o Eu e seu Corpo, seu organismo vivo. Aqui não podemos insistir mais nesse anseio, queremos apenas deixar claro que, de maneira alguma, pretendemos usar o adjetivo “romântico” no sentido negativo. O indivíduo moderno, dotado de “profundidade interior” (Charles Taylor) é em grande medida uma criança do Romantismo Europeu. Como alternativa, o que nos interessa aqui é o conceito de “natureza”. Certamente, todos os fundadores da psicoterapia corporal estão cientes do longo processo evolucionário que tem caracterizado a história do ser humano, bem como da necessidade do processo de educação e socialização nos quais esta história é repetida. E, com certeza, todos estão cientes de que o corpo humano é um conceito-limite entre “natureza” e “cultura”, um elemento de natureza culturalizada, assim como é um elemento de cultura de maneira natural.

Entretanto, em todas essas abordagens, a referência à “natureza” parece estranhamente ingênua. Ela é colocada de maneira perfeita dentro da tradição filosófica que, desde a época de Aristóteles, vem concebendo a natureza como o modo de ser que tem suas próprias leis dentro de si. Para distinguir essa ideia de natureza da arte humana, Aristóteles cita um exemplo metafórico do sofista Antifonte: “Se enterrarmos uma cama e a decomposição é suficientemente forte para produzir um broto, o que seria produzido não seria uma cama, mas um pedaço de madeira” (Aristóteles, 1967, p. 34 [193a]). Então, a “natureza” é vista como algo primordial, diferente do homem cultural e anterior a ele, uma esfera autônoma de ser. De acordo com esta premissa, o corpo humano também é pensado como um fato não examinado que pode ser influenciado pela ação humana, somente dentro de certos limites. Nas obras dos fundadores, encontramos muitas referências ao reino animal e às crianças, bem como à metáfora da grande “Mãe Natureza”, que confirmam essa observação. Além disso, essa ideia de natureza também tem um valor normativo como filosofia moral. Ela serve como modelo para o que é “natural” e “antinatural” e, portanto, tem ou não valor. No conceito de “natureza primária” de Lowen é possível demonstrar como o significado de natureza como origem se mistura com o de natureza-modelo.

B. Retomada de questões decorrentes da tecnologia do desenvolvimento e da realidade virtual: O desaparecimento da natureza

Podemos dizer, então, que a psicoterapia corporal clássica tem como base uma ideia aceita e, por assim dizer, “estável” de natureza, tanto no que se refere à natureza externa, quanto à natureza corporal do homem. Entretanto, na verdade já há algum tempo, e especificamente desde o século passado, que temos testemunhado uma contínua “mudança de fronteiras” (Böhme, 2011, p. 5) entre o que é natural e o que é artificial, entre natureza e cultura. Este é um processo que acaba tornando cada vez mais difícil a distinção entre essas duas esferas, em todos os níveis. O primeiro nível é global e envolve o impacto do homem na natureza: mudanças climáticas, biodiversidade reduzida, o desaparecimento de florestas etc. Parece que apenas os vulcões e terremotos, como resultado de movimentos da superfície terrestre, são deixados como testemunhas infelizes da atividade original da natureza. O segundo nível nos leva de volta a nossa vida diária, onde testemunhamos mudanças profundas nas fronteiras entre natureza e téchne (palavra grega que significa ‘arte, técnica, ofício’ NT), um passo no sentido da colonização pelos sistemas de informação de tudo o que nos rodeia. Esse processo contínuo já estava definido no início dos anos 1990 como “computação ubíqua”. Assim, temos uma visão de um mundo a nossa volta que se tornou inteligente através de um sistema interligado de minicomputadores e sensores interativos (“inteligência ambiental”). Em sua obra Filosofia dos Mundos Inteligentes, o filósofo Klaus Wiegerling resume esse conceito da seguinte maneira:

“Computação ubíqua consiste […] no equipamento de sistema de informação que permeia toda a mesosfera, que não só acompanha nossa vida, mas também mudará tanto nossa experiência do mundo, como de nós mesmos, inclusive a experiência de nossos corpos. Tecnologias, e particularmente as tecnologias dos meios de comunicação, sempre modificaram a maneira com que as pessoas experienciam o mundo e a si mesmas. A nova qualidade da visão de informação da computação ubíqua reside no fato de que o mundo todo, em certo sentido, vem a ser permeado “de modo informacional”, para que todo objeto físico, e não menos importante, nosso corpo, possam tornar-se peças do equipamento de informação, […] que tudo pode se tornar um recurso, um instrumento de conexão, e seu próprio espaço de informática.” (Wiegerling, 2011, p. 14).

A perspectiva da computação ubíqua é um mundo “inteligente”, completamente disponível aos humanos, que, por sua vez, são parte de uma realidade tecnologicamente ampliada. Entre os vários problemas identificados por Wiegerling, indicamos aqui somente o fato de que neste mundo inteligente, o ponto de intersecção entre homem e tecnologia tende a se tornar invisível, de maneira que sistemas de informação complexa podem substituir gradualmente o homem como o sujeito da ação. Outro problema é a questão da “resistência” do mundo (Widerständigkeit). Em um ambiente tecnologicamente ampliado e funcionalmente padronizado para atender determinadas necessidades, a tendência do mundo é perder seu caráter de resistência ou antagonismo no que diz respeito ao homem. No entanto, essas experiências da resistência das coisas e do mundo em geral são indispensáveis para a constituição de nossa identidade. Para dar um exemplo, precisamos somente considerar que nossos filhos e netos nunca serão capazes de ter a experiência antes considerada arquetípica, aquela de João e Maria que se perdem na floresta e, no fim, acham uma saída: em cada momento e onde quer que possam estar, será possível localizá-los.

C. Nova tarefa – avaliando a natureza externa e interna

1. Natureza versus construção

É exatamente nesse ponto que encontramos o objetivo da terceira grande mudança de fronteira: superar a resistência da natureza como vida, organismo, corpo animal e corpo humano. “Mas não morremos porque ficamos doentes, morremos porque estamos vivos”, escreve Montaigne em um de seus Ensaios, expressando o que pode ser a mais árdua experiência da condição humana, mas é, com certeza, a experiência mais evidente remanescente de nossa herança cultural (Montaigne, 1992, p. 1462). Pelo contrário, nos dias de hoje a tecnologia médica abre para discussão as conhecidas condições de tudo que costumávamos considerar natural no homem. Como, por exemplo, a medicina reprodutiva, ela pode intervir em nossa constituição genética e não podemos nos esquecer de que atualmente somente os limites legais restringem a amplitude dessas possiblidades concretas. A medicina de transplantes pode livremente mudar e substituir órgãos e partes de nosso organismo, baseada em um “cartesianismo praticado” (Böhme, 2003, p. 168) relativamente à máquina humana. A história do filósofo francês Jean-Luc Nancy em O intruso é uma descrição emocionante desta experiência: Nancy, sofrendo de uma insuficiência cardíaca progressiva, havia concordado em viver com o coração de outra pessoa, provavelmente uma mulher muito mais jovem do que ele (Nancy, 2000). Assim como acontece com a cirurgia plástica e a farmacologia, a medicina pode modificar tanto nossas características externas, como as internas. Através da tão divulgada prática psicofarmacológica de aperfeiçoamento neurológico, o humor das pessoas pode suportar o aperfeiçoamento psicofísico para satisfazer suas necessidades de êxito.

Todas essas tendências e realidades da tecnologia médica podem ser resumidas nos conceitos de Biofato e Ciborgue. O Ciborgue é até agora somente uma fantasia derivada da astronáutica. É um ser, mistura de organismo vivo com elementos cibernéticos, que tem a intenção de melhorar as possibilidades de sobrevivência no espaço – por exemplo, com relação à percepção de radiação perigosa através de sensores implantados. Por outro lado, Biofatos são objetos artificiais feitos pelo homem, com base orgânico-biológica. A comida feita com plantas geneticamente modificadas é um exemplo deles, ou então o caso de Dolly, a ovelha clonada, provavelmente o mais famoso Biofato. Como é impossível, nesses casos, separar o que é natural do que não é, cabe falar em “corporalidade secundária” (Wiegerling, 2011).

Contudo, o termo “corporalidade secundária” já nos leva a duvidar se e em que sentido podemos ainda falar sobre “natureza”:

“Se a modernidade sempre foi evocada pela intenção de transformar o que é conhecido no que é construído, este projeto foi ampliado para incluir o corpo do homem, que é a Natureza que somos, apenas no século 20. O homem começou em várias frentes sua transformação em objeto. Isto coloca a questão de que homem deveria ter mantido para ser reconhecido, assim como a Natureza. Considerando este desafio, a questão é colocada pela primeira vez se e em que sentido é essencial ao homem ser Natureza.” (Böhme, 2003, p. 152)

Essas difíceis questões podem parecer uma ameaça à psicoterapia corporal, em seu objetivo de orientar o cliente de volta à identificação com as experiências vividas de seu corpo real, como Alexander Lowen escreve em outra passagem característica:

“A Bioenergética baseia-se na simples proposição de que cada pessoa é seu corpo. Nenhuma pessoa existe separada de seu corpo vivo, no qual ela existe e através do qual ela se expressa e se relaciona com o mundo a sua volta” (Lowen, 1975, p. 54).

2. Identidade pessoal na Aldeia Global

Além da natureza que nos rodeia e que nós somos, os progressos da tecnologia da computação também transformaram todo o campo da comunicação humana. Aqui, igualmente, o corpo físico como presença concreta está desaparecendo, se é que isso já não aconteceu completamente. Com respeito à comunicação, é difícil falar de natureza na Aldeia Global porque o que é natural sempre foi colocado no espaço e no tempo, enquanto a Aldeia Global representa nosso sucesso em superar, ou talvez até cancelar esses limites.

A metáfora da Aldeia Global foi criada nos idos de 1960, pelo perito canadense nos meios de comunicação de massa, Marshall McLuhan (1911 – 1980), que a descreve nos seguintes termos evocativos:

“Nosso mundo é um mundo totalmente novo, da simultaneidade. O ‘tempo’ terminou, o ‘espaço’ desapareceu. Vivemos agora em uma aldeia global… um acontecimento simultâneo […] A informação é derramada sobre nós, instantânea e continuamente. Assim que a informação é adquirida, ela é rapidamente substituída por informações ainda mais novas. […] A nova interdependência eletrônica recria o mundo à imagem da aldeia global” (McLuhan & Fiore, 1967, p. 63 e 67).1

Se, na época, essa visão estivesse baseada apenas na presença da mídia tradicional, como jornais, revistas e televisão, certamente teria sido completamente preenchida pela rede mundial de computadores (world wide web), que existia desde 1991. Na verdade, a Internet não é de fato um meio de comunicação, no sentido clássico. Como seu nome original, Redes Interconectadas, sugere, ela representa um “meio híbrido”, oferecendo uma infraestrutura geral que dá acesso a uma grande variedade de informações visuais, digitais e auditivas. Enquanto essa simultaneidade de modos midiáticos já vai além do conceito tradicional de mídia, o aspecto realmente revolucionário da internet está no seu caráter “democrático”, que se refere a seu potencial interativo (um-para-muitos, um-para-um, muitos-para-muitos, muitos-para-um). Nesse sentido, a presença da Internet abriu um enorme espaço de liberdade para a comunicação, além de qualquer limite de tempo e de espaço, “em tempo real”. Criou novos espaços como as redes sociais e as salas de bate-papo, bem como mundos virtuais como o Second Life, que representa novas formas de encontro e expressão, nos dois níveis, individual e coletivo. Mas, em que sentido tudo isso tem a ver com o tópico em discussão?

Sendo o mais conciso possível, podemos talvez selecionar dois campos centrais que interessam tanto à psicoterapia em geral, como à psicoterapia corporal em particular: a questão de realidade e a da identidade pessoal. Possivelmente, o denominador comum das duas esteja exatamente em uma tendência a abrandar ou ampliar esses conceitos.

3. Realidade e Identidade pessoal

Primeiramente, vamos examinar a questão da “realidade”. O que é “realidade virtual”? Podemos lembrar que a palavra virtus (“poder”, “força”) e depois a palavra medieval latina virtuale referem-se a algo cuja condição ontológica é menos passível de uma definição precisa do que a palavra realis. Enquanto realis significa uma realidade concreta, material, virtuale tem uma qualidade variável, que se refere a algo que poderia “potencialmente” ou “possivelmente” ser ou acontecer.

Esta qualidade iridescente se faz possível pelo fato de que a realidade virtual sobre a qual estamos falando existe dentro de um espaço midiático, ou dentro de uma realidade que, de alguma forma, é “enriquecida” pela mídia. Porém, precisamos lembrar que a mídia, em acentuado contraste com o ingênuo nome de médium (meio de comunicação), e de simples mediadora também, tem qualidades que vão além: ela não só tem o poder de selecionar e transformar a realidade de acordo com seu modo específico de apresentação (como por exemplo, fotos ou histórias infantis), como também tem o poder de construir a realidade (definindo o que é mais “importante” e, deste modo, “realmente real” e o que é menos assim). Enfim, ela também tem o poder potencial de substituir a realidade. Por exemplo, para todos nós existe o perigo de identificar instintivamente o relato de eventos políticos oferecido na televisão com “política” em geral. Esta obscura confusão entre o meio e seu conteúdo, entre mundo e meio já está expressa por Marshall McLuhan, mencionado acima, em sua fórmula paradoxal, “O meio é a mensagem”. A seguinte passagem de Klaus Wiegerling resume esta complexa sobreposição:

“Quanto mais complexa é uma sociedade, mais importante se torna a mediação da mídia. Em nossa sociedade, essência e aparência são tão completamente misturadas que é quase impossível se falar de uma realidade independente da percepção, totalmente separada da simulação e ficção. Nossa realidade consiste em uma mistura de elementos que são reais no sentido mais exato, com elementos simulados e ficcionais criados a partir de recursos técnicos. Pode-se dizer que ela se tornou virtual e assim, menos relacionada a um mundo externo físico, independente da consciência do que é uma experiência interior, o que inclui produções de mídia.” (Wiegerling, 2008, p. 230)

A referência à experiência interior oferece-nos a oportunidade de seguirmos com a questão da identidade pessoal. Por ora, os peritos estão convencidos de que a assídua presença on-line cria uma tendência à chamada “personalidade múltipla” nos usuários. Vamos tentar compreender em que sentido.

No contexto, essa tendência é principalmente expressa na relação entre o “modo on-line” e o “modo off-line” na vida de um usuário. Nota-se, de passagem, que o mero fato de se distinguir entre os modos de existência “on-line” e “off-line” implica uma enorme mudança na maneira que percebemos a vida. O que, até agora, temos simplesmente chamado de “vida” – nosso incomparável cotidiano – agora coincide com o “modo off-line” de existência, com o qual ela é sempre relacionada e comparada com o “modo on-line”. Mais especificamente, a questão da personalidade múltipla é ligada ao modo on-line, em relação a fatores como a quantidade média de tempo passado on-line a cada dia, bem como à idade e maturidade pessoal do usuário.

Mas, falando mais generalizadamente, percebemos todos os dias que nossa vida acontece simultaneamente em dois níveis paralelos: o nível da vida real e o da virtual. Assim, falamos de um novo padrão social chamado “individualismo de rede”, e do fato de que somos cada vez mais aptos a escolher, e realmente o fazemos, os parceiros com os quais nos comunicamos, de maneira livre e fora das amarras concretas de nossa vida, do Lebenswelt (mundo em que vivemos) (Metzner-Szigeth, 2008). No fenômeno do individualismo em rede, importantes mudanças sociológicas convergem com o desenvolvimento extremamente rápido da tecnologia da informação. Entre a voracidade da sociedade e a exigência (tensão de exigência) de um lado e a oferta da nova e sofisticada tecnologia da comunicação (empurrão da tecnologia) do outro, às vezes parece difícil dizer qual é o elemento motivador. É fácil pressupor que no futuro, nossa vida on-line se tornará cada vez mais importante em relação a nossa vida real. “Vida real” tenderá a ser “em outro lugar”, no grande espaço de uma presença comum simultânea. Este é o espaço de uma comunicação “livre”, livre também no sentido de ser tendencialmente deslocada, porque o corpo não tem parte nisso. O corpo é a grande ausência.

Como se sabe, as várias realidades da internet, principalmente salas de bate-papos e jogos virtuais sofisticados, como Second Life e World of Warcraft, abrem espaço para múltiplas maneiras de construir e apresentar “quem eu sou”. Já observamos que essas formas interativas abrem amplos espaços de criatividade, liberdade e divertimento. Mas, no geral, a realidade da internet funciona de várias maneiras como um poderoso panorama para uma apresentação da própria imagem, uma forma de “virtualização” do Eu. Na ausência de um Outro real, o usuário tem a possibilidade de apresentar-se e movimentar-se de muitas maneiras diferentes, nenhuma das quais obrigatória e que ele é livre para mudar a qualquer momento. Neste sentido, a rede vem sendo chamada de espaço do “como se”, um espaço no qual “qualquer referência a coisas ou acontecimentos ou pessoas reais é puramente casual”.

Não podemos continuar tratando a questão da múltipla identidade aqui; é um fenômeno que, sem dúvida nenhuma, se tornará até mais difundido no futuro. Também não podemos aprofundar outros aspectos a respeito da Aldeia Global que tangenciam nosso tema. Entre eles, sobretudo há todas as questões de nossa percepção do mundo, assim como os problemas da integração psíquica de nossa experiência. No que diz respeito à percepção, poderíamos investigar mais a crescente importância de imagens e de dimensão visual em geral, a dimensão tendenciosamente desligada do corpo e suas posturas e sensações concretas. Não é por acaso que a atual teoria da imagem desperta tanto interesse na filosofia e nas ciências da comunicação, tanto assim que, ao longo da última década, uma nova disciplina foi criada, a Bildwissenschaft, “Ciência da imagem” (Sachs-Hombach, 2009).

Com relação à integração psíquica de experiência, podemos recordar a já mencionada “Teoria da aceleração”, que enfatiza a crescente dificuldade de conceber a vida pessoal hoje como uma “unidade orgânica”, baseada em um projeto geral de vida. A experiência vivida de “ressonância” com o mundo (Rosa, 2012, p. 9), mesmo não sendo duradoura, baseia-se na integração psíquica bem-sucedida de nossa experiência do mundo. Para os habitantes da Aldeia Global, esta integração é e será especialmente penosa. Como Klaus Wiegerling escreve, “No futuro, a construção da identidade ocorrerá sob condições mais difíceis” (Wiegerling, 2008, p. 250).

4. A Natureza diante de nós – escolhas e estilo de vida

Voltemos e encontremos a sequência do nosso raciocínio. Começando pelo conceito de “corpo” e “natureza” dos fundadores da psicoterapia corporal, salientamos os limites de sua teoria nas condições atuais, em dois níveis. Primeiro, há um limite com relação a mudanças na natureza externa e no corpo humano, isto é, a progressiva tecnologização das duas áreas, o que deturpa tendenciosamente a relação com a natureza. Em segundo lugar, há um limite com relação ao mundo da Aldeia Global, uma realidade completamente artificial que leva a inúmeros problemas para a formação de uma identidade pessoal. Revendo algumas das palavras-chave de que fizemos uso, tais como computação ubíqua, Biofato, realidade virtual, modos de existência on-line e off-line e identidade em perspectiva, tornamo-nos progressivamente cientes da extrema complexidade do mundo em que vivemos. É como se diversas camadas de significado de “natureza”, “realidade” e “identidade” estivessem vivendo lado a lado em um tipo de co-presença caleidoscópica, participando de processos que evoluem rapidamente. Como nos conduzir, como nos comportar, como viver nessa situação?

Uma distinção feita pelo filósofo Gernot Böhme oferece-nos uma contribuição útil para nossa discussão dos conceitos de “corpo” e “natureza”. Böhme apresentou essa distinção em uma palestra dada no Festival de Filosofia de Modena, em setembro de 2011, dedicado à Natureza. De acordo com Böhme, em uma civilização tecnológica como a nossa, não podemos mais considerar óbvio “ser corpo”, “ser natureza” e “ser parte de uma natureza circundante”. É como se o que foi por um longo tempo “a velha natureza” ficasse “para trás”. Entretanto, temos outra natureza “à nossa frente”. Mais especificamente, “A natureza está a nossa frente como uma tarefa. […] A natureza não é mais o que nos é dado simplesmente, mas o que é desejado” (Böhme, 2013/2014, p.22). Isto significa que precisamos ponderar, decidir e concretamente compreender no cotidiano se e como queremos nos ligar à natureza externa e à natureza que somos, que significado queremos dar a elas. Essas escolhas são expressas como atitudes práticas e se fundem em um estilo de vida.

Para exemplificar concretamente, precisamos apenas pensar que na memória da humanidade, embora o parto sempre tenha ocorrido dentro de um contexto cultural, era considerado natural e esperava-se que acontecesse naturalmente. No decorrer do século 20, o parto tornou-se a prerrogativa do novo know-how médico-tecnológico: dar à luz foi deslocado de casa para o hospital, enquanto a figura da parteira, a representante tradicional do conhecimento consagrado, perdeu importância. Em contraposição, nas últimas décadas o parto tem se tornado objeto de uma escolha instruída que, uma vez mais, tende a limitar aspectos médicos: hoje em dia, podemos e precisamos escolher a que tipo de parto se quer realizar, como e em que medida fazer dele um “parto natural” novamente.

Encontramos outro exemplo concreto nos exercícios bioenergéticos concebidos pelo casal Leslie e Alexander Lowen, nos anos 1950 e 1960. Fazendo esses exercícios, escolhemos nos explorar como seres corporais (Leibwesen). Afirmamos, reconhecemos e aceitamos ser um organismo, uma parte da natureza que nos rodeia e que nós mesmos somos. Fazendo esses exercícios com certa regularidade, integrando-os à nossa vida diária, fazemos dessa escolha um estilo de vida. A imagem de Alexander Lowen como um homem idoso, fazendo exercícios todos os dias é um grande exemplo disso.

A psicoterapia na Aldeia Global é obrigada a levar em consideração a extrema complexidade desta nova realidade, sobretudo no que se refere à identidade dos jovens, os chamados “nativos digitais”. Para eles, a presença dos computadores como uma parte integrante do mundo é tida como posta, assim como os carros e televisões o foram para a geração que precedeu os “imigrantes digitais”. Na verdade, é justamente esta complexidade tendenciosamente desestabilizadora que confirma a importância da psicoterapia. No encontro existencial com um Outro concreto, o cliente pode e deve experienciar a dignidade e o valor de sua própria personalidade insubstituível e da personalidade insubstituível do Outro e de todos os outros.

A psicoterapia corporal também se vê diante de novos desafios. Ela já sofreu uma grande mudança em relação a seu início, definindo-se hoje como psicoterapia somático-relacional. Terá ela sucesso em formular e integrar conceitualmente as mudanças que ocorrem no mundo tecnológico atual, em relação ao corpo e à natureza em geral? Passará ela a ser “antiquada” ou “desatualizada” diante desse mundo esperto?

Talvez o “humanismo crítico” (Schneider, 2012, p.687) da psicoterapia corporal, sua “extemporaneidade” (Nietzsche) específica e preciosa resida exatamente em sua percepção fundamental de nosso “ser natureza”. Portanto, parece que a importância da abordagem corporal é até mais palpável dentro de nossa cultura. Os filósofos contemporâneos falam sobre “a crescente perda de uma experiência de vida integrada”, de uma “alienação de nosso próprio corpo” (Wiegerling, 2011), e em geral, de “perda da percepção de um sentimento coerente de self ou de vida no futuro” (Rosa, 2011, p. 1058). Alexander Lowen, em seu livro de 1983, Narcisismo, quando já era um homem idoso, inteligentemente compreendeu esses fenômenos, como a crescente “irrealidade do tempo atual”.

Sem dúvida, este é um julgamento muito negativo. No entanto, um aspecto da complexidade sobre a qual falamos é que a realidade da Aldeia Global – talvez como o fenômeno da tecnologia em geral – também abre considerável espaço para a liberdade. Em todo caso, dentro dessa realidade podemos identificar duas grandes tarefas para a psicoterapia corporal atual: a tarefa curativa de restaurar a experiência do cliente de seu próprio corpo, enraizar-se neste corpo, e a tarefa pedagógica de torná-lo sensível à importância de uma “natureza” externa e pessoal-corporal, a não mais ser vista como óbvia, porém, em vez disso, como o objeto de escolhas e de estilos de vida.

D. Considerações clínicas

A tarefa curativa de o cliente recuperar a experiência de seu próprio corpo e de ancorar-se nele é um objetivo geral da psicoterapia corporal que pode ser compreendida de várias formas. Seguindo a linha da discussão anterior, gostaria de enfatizar em minhas considerações clínicas a questão do tempo na psicoterapia. Como podemos, em um mundo de aceleração contínua, trazer o homem de volta para experienciar os ritmos biológicos da vida? Como trazê-lo de volta ao “tempo do corpo”?

1. Contato Nutriente (Nurturing Contact)

Agora, gostaria de apresentar as técnicas de “contato nutriente” que são, em minha experiência, uma maneira útil de abordar esses instigantes objetivos. Essas técnicas foram elaboradas na Psicoterapia Organísmica de Malcolm Brown (Brown, 1990), e nela representam a principal ferramenta para alcançar níveis mais profundos de nossa experiência. À primeira vista, esse tipo de contato parece bem semelhante às técnicas com as quais estamos familiarizados em nossa prática já estabelecida como terapeutas bioenergéticos: com o cliente deitado no colchão em decúbito dorsal ou ventral, trabalhamos no contato, mantendo uma ou duas mãos em várias partes de seu corpo – na testa, na nuca, na barriga, na área do sacro, nos joelhos etc. Mas a diferença de nosso modo habitual de usar o toque direto, a peculiaridade do contato nutriente está em sua duração. Em geral, trata-se de um contato suave, não diretivo e demorado, que proporciona a possibilidade de o cliente sentir profundamente. E isso necessita tempo. O contato pode durar 5, 10, 15 ou até 20 minutos na mesma parte do corpo, enquanto o terapeuta fica com o cliente em uma posição atenta de espera e observação.

Neste espaço aberto e não estruturado, o “espaço de silêncio” (Nascimento, 2005), podem acontecer muitas coisas. Com sentimentos profundos, o cliente pode ter experiências regressivas, voltando a camadas primitivas do Self. O inconsciente criativo pode produzir imagens poderosas, gerando temor ou conforto, como descrevi referindo-me a minha própria experiência (Helferich, 2004). O corpo pode responder com várias reações organísmicas espontâneas de seu interior, enquanto experiencia todos os tipos de emoção. Em certos casos, “nada” acontece, o cliente fica ocupado, pensando ou adormece. Em outros casos, ele pode experienciar um profundo sentimento de paz e harmonia como efeito de processos de equilíbrio entre as várias partes do Self corporal. Às vezes o corpo pode expressar uma necessidade de interagir diretamente com o terapeuta, querendo mais pressão física, ou até mesmo um tipo de luta, por exemplo. Nestes casos, o “contato nutriente” torna-se um “contato catalítico”, a outra forma de toque direto, que inclui muitos tipos de movimento interativo entre o cliente e o terapeuta.

Como podemos observar, essas técnicas de contato demorado e não diretivo têm como objetivo uma profunda integração e equilíbrio da Alma encarnada. Elas funcionam deliberadamente tornando os processos bastante rápidos de nossa consciência mais lentos, bem como desacelerando os sistemas de controle da mente, criando um tipo diferente de receptividade, um “vazio indiferenciado” ou “consciência difusa” (Brown, 2001). Esses processos de desaceleração facilitam formas alternativas de ativação de energia, especialmente com relação ao nosso “segundo cérebro” (Michael Gershon), a área visceral, que pode ser compreendida como uma ponte para camadas não verbais e mediadas corporalmente de memória e sentimento.

Quanto ao terapeuta, a ativação de tais formas de experiência corporal “desde seu interior” exige duas capacidades básicas. Primeiro, o terapeuta tem que desenvolver a arte da espera. Ele tem que aprender a tolerar a incerteza que vem da passividade e silêncio do cliente, em uma situação em que às vezes ele, de fato, não sabe o que está ocorrendo com o cliente. Esperar sem fazer algo ativamente, facilmente cria ansiedade, um sentimento de “sentir-se inútil” ou de “não fazer nada”. Estas são realidades contratransferenciais que merecem nosso respeito. Elas exigem a capacidade do terapeuta em lidar com a ansiedade e de gerenciar a duração do tempo do contato nutriente em cada caso, sem se pressionar.

Em segundo lugar, para criar uma conexão não verbal eficaz com a vida interior do cliente, o terapeuta tem que desenvolver uma receptividade sutil, utilizando-se de sua própria experiência corporal. Naturalmente, isso inclui uma atenção contínua ao processo de respiração tanto do cliente, quanto do terapeuta e à qualidade específica de contato, como pode ficar evidente na temperatura de suas mãos (por exemplo, quente – frio – mudando).

Finalmente, temos que considerar ainda um outro pré-requisito mais objetivo com respeito ao setting terapêutico. Naturalmente, o contato prolongado só é possível quando previsto em um enquadramento terapêutico que proporcione o tempo necessário para este tipo de desaceleração. Nesse caso, uma sessão com duração de uma hora e meia a duas horas é mais adequada. Por esta razão, eu pessoalmente prefiro sessões de uma hora e meia, sempre que possível.

Nesse ponto, acho que cabe uma reflexão geral sobre a disposição de tempo de nosso setting na psicoterapia corporal. Comparada com todas as formas de terapia exclusivamente verbal, nossa abordagem é mais complexa. Movimentando-nos em dois níveis, geralmente integramos uma fase verbal a uma parte experiencial na sessão. Entretanto, parece que desde o início, a psicoterapia corporal adotou sessões de quarenta e cinco ou cinquenta minutos da psicanálise. Mas, essa disposição de tempo foi criada, e se adequa perfeitamente, para uma forma exclusivamente verbal de psicoterapia. Infelizmente, foi adotada sem considerar as necessidades de tempo diferentes da experiência corporal. Não quero dizer que não seja possível oferecer excelente psicoterapia corporal em sessões de quarenta e cinco ou cinquenta minutos. A realidade de nosso trabalho cotidiano força-nos a fazer isso, visto que esta duração de tempo é a disposição habitual. Deveríamos admitir, contudo, que muitas opções possíveis de intervenção são quase automaticamente excluídas pelo terapeuta quando a disposição de tempo é tão restrita.

2. Caso clínico – Vinheta

Alice, uma cliente de 32 anos de idade, está vivendo um momento favorável. De fato, apesar de certas dificuldades em relação à carreira como futura psicoterapeuta, ela tem uma boa perspectiva de vida e planeja casar-se no verão. Tendo estado em terapia por mais de três anos, com a frequência de uma sessão de uma hora por semana, ela vem resolvendo, com sucesso, muitos problemas relativos à sua autoconfiança, identidade feminina e aos seus traços de caráter esquizoide e oral. Ao longo dos anos, construímos uma relação boa e de confiança, e eu aprecio trabalhar com ela.

Durante o feriado de Páscoa, ela leu o livro de Lowen, O Corpo em Depressão, que a impressionou profundamente. Assim, na presente sessão, ela quer começar a trabalhar o corpo imediatamente e eu concordo com isso. Começamos com alguns exercícios de estimulação, como grounding, curvar-se (também conhecido como inclinação para frente, ou elefante), e arqueamento (ou o arco). Enquanto ela está fazendo o arco, peço que ela encontre um som que expresse o impacto total do livro de Lowen sobre ela. O som que ela produz parece um lamento. Depois, peço-lhe que fique quieta por um instante e sinta seu corpo. Ela toca seu pescoço e seus ombros, como se quisesse massagear-se. No fim, ela coloca suas mãos na barriga. Quando perguntada sobre o que gostaria de fazer a seguir, ela diz que quer se concentrar na barriga e eu a convido a deitar em decúbito dorsal em um colchão.

Ela concorda em receber o contato da minha mão em sua barriga. A seguir, no período de mais ou menos dez minutos, inicialmente ela aparenta estar relaxada e sua respiração é regular e abdominal. Depois de um tempo, entretanto, ela começa a engolir. Sua respiração se torna cada vez mais torácica, suas pernas se agitam e ela abre e fecha suas mãos, fazendo sons fracos.

Alguns minutos depois, ela começa a tossir violentamente, quase chegando a vomitar. Seu corpo inteiro treme e ela começa a chorar. Em seguida, acaricia os olhos e o rosto com as mãos. Aos poucos, fica mais calma, vira-se devagar para a direita e para a esquerda, e no final, se acalma completamente e fecha os olhos.

Depois de um momento de silêncio, começamos a falar sobre o ocorrido. Ela diz que foi uma experiência muito intensa e terrível, uma sensação de estar travada e paralisada que começou nas mãos e braços, como se seu corpo fosse ficar petrificado. Abrindo e fechando as mãos e movimentando a pélvis e as pernas, ela tentou se defender, mas, apesar disso, sentiu o perigo de ser petrificada, de tornar-se mármore branco.

Infelizmente, não tivemos tempo suficiente naquela sessão para explorar em detalhes exatamente o que foi que emergiu, o que significa “tornar-se uma pedra” e que tipo de recordações, imagens e emoções estavam associadas a isso. Então, propus que ela fizesse um desenho da pedra em casa.

Este caso clínico demonstra como uma técnica aparentemente simples de contato nutriente, como a mão na barriga, pode trazer à tona profundas experiências corporais e psíquicas, já que essa cliente estava pronta e aberta o bastante para deixar que isso ocorresse. Também há o problema do limite de tempo, mas, como existe uma boa relação terapêutica, falaríamos sobre a experiência na sessão seguinte, para dar seguimento e explorar mais profundamente o significado de sua reação.

3. Semelhanças em perspectivas clínicas

Como já mencionei, fiquei agradavelmente surpreso ao encontrar ideias semelhantes às minhas próprias considerações no artigo de Maê Nascimento, no último International Journal (2014). Esta convergência diz respeito à urgência de lidar teoricamente com o processo de globalização, bem como às considerações e proposições clínicas para contrabalançá-lo.

Quanto ao aspecto clínico, as semelhanças ficam bastante evidentes ao leitor atento no tópico “Dois Toques para Restaurar a Conexão com o Mundo Interno” (Nascimento, 2014, p. 27-29). Embora os dois tipos de toques sejam aplicados na posição de pé (ao contrário da posição deitada geralmente usada no contato nutriente), basicamente eles seguem o mesmo objetivo, i.e.,

“alcançar o fluxo energético via sistema nervoso, e não via estrutura óssea protetora ou camada muscular […] Também ativa o períneo e o centro Hara, favorecendo o grounding interno e o mergulho dentro de si mesmo”. (Basso & Pulstilnik, 2001 pg 49-50)

Isto é bastante congruente com o conceito do grounding horizontal da Psicoterapia Organísmica, que visa suavizar o controle do Ego, ativando o fluxo energético visceral (como na teoria de Gerda Boyesen). A outra semelhança notável diz respeito ao estilo não diretivo do terapeuta, atitude que “abre espaço para o processo do cliente, sem controlá-lo ou direcioná-lo” (p. 29). Esta é exatamente a atitude exigida pelo contato nutriente prolongado: uma percepção sutil dos processos organísmicos que se passam no campo co-criado da relação, bem como o mais profundo respeito pelo desenvolvimento pessoal autônomo do cliente, seu Selbstwegung (literalmente, o “automovimento”), para citar uma expressão alemã apropriada. Esta orientação profundamente humanística do terapeuta, este recuar de si mesmo com humildade, por respeito ao cliente está carregada da fluida, porém, poderosa qualidade de “vazio” da filosofia Zen.

Conclusão

Depois dessas considerações clínicas, voltamos à discussão geral para esboçar uma conclusão. Acho que nós, psicoterapeutas corporais, temos que considerar a realidade da Aldeia Global como um fato. Temos que reconhecer que, por um bom tempo, temos vivido simultaneamente em dois mundos paralelos. Há uma tendência predominante para transformar a tradicional “realidade real” da natureza e do corpo, bem como a tradicional “comunicação real”, em uma realidade paralela artificialmente recriada ou digitalmente mediada.

Como mencionado, a avaliação dessas evoluções é complexa. Temos que pesar cuidadosamente tendências potencialmente negativas, que podem prejudicar nossa identidade corporal e pessoal, contra os novos espaços de liberdade e escolha que temos à nossa disposição. De fato, já temos que escolher frequentemente que tipo de “corpo”, que tipo de “natureza”, que tipo de “ser humano” queremos ser, e todas essas escolhas têm que encontrar uma expressão em um estilo de vida correspondente.

A psicoterapia também se vê continuamente compelida a escolher até onde e de que maneiras estar envolvida nessas mudanças em curso, por exemplo, quanto à questão de em que medida a comunicação digitalmente mediada pode, deve, ou não, tomar parte no processo terapêutico. Neste panorama complexo, a psicoterapia corporal torna-se cada vez mais importante. Enfatizando o aspecto básico de que “somos nosso corpo”, a psicoterapia corporal nos convida e desafia a avaliar e contrabalançar, de maneira crítica, as tendências que predominam hoje em dia, o desaparecimento progressivo da natureza, do corpo e das formas diretas de relacionamentos humanos. Na verdade, as técnicas de “contato nutriente” apresentadas acima nas considerações clínicas são uma ponte para a experiência que o cliente tem de si mesmo, como a totalidade organísmica que ele é.

Tudo considerado, nossa posição sobre a combinação poderosa das tendências tecnológicas, econômicas e sociais dominantes de nossa época parece ser fundamentalmente correta e compensatória. Em minha opinião, entretanto, esta é precisamente a contribuição mais preciosa do humanismo curador e crítico da psicoterapia corporal hoje em dia.

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Sobre o Autor

Christoph Helferich é psicólogo formado e trabalha em consultório particular em Bagno a Ripoli, perto de Florença, Itália. É trainer local e membro do Conselho Diretor da Sociedade Italiana de Análise Bioenergética (SIAB), e Co-diretor do periódico científico “Grounding. La rivista italiana di analisi bioenergetica”. Também está envolvido no conselho filosófico e, portanto, especialmente interessado nas várias conexões entre a filosofia e a psicoterapia.

Nota final

[1]
Devido a um erro de composição, o título original era “O meio é a mensagem” preferivelmente a “A mensagem”. McLuhan achou esse erro elucidativo e decidiu então não corrigi-lo.